No livro de Mário Rui Silvestre “Pernes, Terra Antiga do Bairro Ribatejano – Vol. II” lê-se:
“Nos séculos da ruralidade portuguesa, Pernes assumiu enorme importância económica no contexto nacional. Essa importância assentava essencialmente nos Moinhos e Pisões dos rios Alviela e Centeio, e nas culturas agrícolas a eles associadas, milho e trigo, em especial. Disputados em várias ocasiões, estes Moinhos entraram cedo na história de Portugal. De origem Árabe, povo que introduziu notáveis melhoramentos neste tipo de engenhos, foram doados, após a Reconquista Cristã, à Ordem do Templo por D. Afonso Henriques.
No séc. XV, por inquérito mandado fazer por esta Ordem, sabe-se que existiam só na Ribeira do Alviela em Pernes, onze Moinhos e Azenhas. No rio Centeio, afluente do Alviela, não há notícia para a mesma época, mas sabe-se que existiam alguns Moinhos e Pisões, ou seja, engenhos para a fabricação de tecidos de linho.
Cobiçados por Ordens religiosas, Coroa, e fidalgos, estes Moinhos tiveram diversos possuidores. Duas Ordens religiosas foram donatárias de Moinhos na Ribeira de Pernes: Templários, depois Ordem de Cristo, e Avis.
D. João I, Mestre de Avis, após a batalha de Aljubarrota, tira alguns a um fidalgo que o tinha traído, e dá-os a outro.
No séc. XV, o rei D. Afonso V doa vários à condessa de Abrantes, Dª Beatriz da Silva, mãe do futuro herói nacional D. Francisco de Almeida.
No séc. XVI, D. Gil Eanes da Costa, o dono do palácio de Casével, possuía pelo menos um, na margem esquerda, aonde foi encontrada uma pedra com o brasão da família.
No séc. XIX, um Moinho pertenceu ao conde da Taipa, D. Gastão Coutinho e Sande, ligado à Casa de Abrantes e morgado de Vaqueiros. Ainda nesse século o centro das disputas entre D. Pedro e D. Miguel, na fase final da Guerra Civil, ocorreu em torno destes Moinhos, com ataques entre os contendores pela sua posse, e uma batalha importante, nas margens do Alviela, naquele que passou a ser conhecido como o campo do Saldanha, em memória do marechal vencedor.
Voltemos no entanto à doação aos Templários, por D. Afonso Henriques, de oito destes Moinhos, feita em 1157, e não em 1165 como pretendem alguns. O original guarda-se no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Livro das Escrituras, segunda parte, e diz o seguinte:
«Em nome de Deus, Eu, Afonso, rei de Portugal, e minha mulher rainha Mafalda, juntamente com meus filhos, fazemos Carta de Testamento e doação a vós, Mestre Gualdim, e aos mais cavaleiros do Templo, daqueles oito moinhos que estão em dois açudes do Alviela, e todos os outros que nos sobreditos dois açudes poderes edificar. Portanto damos e concedemos a Deus e a Vós os tais moinhos, com tal passo e condição que Vós tenhais cuidado de os edificar e reformar, e fazer tudo o que pertence à fábrica deles, à custa dos rendimentos dos mesmos moinhos e o que crescer dos ditos rendimentos será a metade para Vós e metade para mim e Vós possuíreis os tais moinhos para sempre e vossos sucessores e nem eu nem meus filhos terão neles algum poder, senão só o direito acima determinado.
E se alguém (o que não cremos se faça), quiser quebrantar esta nossa doação, ou diminuir-lha, não seja lícito, mas esta escritura ficará sempre em vigor.
Feita Carta de Testamento e Firmeza em o mês de Julho de 1195. Nós os sobreditos mandamos fazer esta Carta, a roboramos, e assinamos em presença de abonadas testemunhas». Seguem-se os sinais do rei e da rainha.
A confusão da data tem a ver com o facto do ano que figura no documento (1195), ser da datação de César e não de Cristo, portanto têm que se descontar os 38 anos correspondentes. Isto sabe qualquer historiador. Contudo o que lá está escrito exactamente é MCLXV, com um til por cima do X. O que lido à pressa daria os tais 1165. Acontece que aquele X, com o til ou barra por cima, não vale dez como valeria se não tivesse a barra, mas sim quarenta. Portanto a leitura correcta é 1195. Descontando os tais 38 anos, temos 1157, conforme já tinha dito no primeiro volume desta obra.
Também no mesmo Arquivo e Livro de Escrituras, mas para o ano 1269, se pode ler outra doação, agora do Comendador da Ordem do Templo em Santarém, a Domingos Pires e sua mulher, que diz assim:
«Frei Gonçalo Gonçalves, Comendador da Ordem do Templo em Santarém, concede a Domingos Pires e sua mulher Maria Estevão, fazer à sua custa no rio Alviela duas casas de moenda (moinhos), e uma casa de Pisões no rio de Pernes (Centeio), que poderão gozar pelo espaço de cinco anos, passados os quais as ditas moendas e pisões passem em paz e sem contradição para a Ordem do Templo».
Uma velha tradição em Pernes, dá Camões como visitante de um certo «Moinho Manuelino» na Ribeira do Alviela. Após a investigação que tive oportunidade de fazer e publicar, estou hoje convencido que essa tradição pode ter um fundo de verdade.
D. Manuel de Portugal, a quem Camões agradece na Ode VII a ajuda na publicação de «Os Lusíadas», era desde 1538 Comendador de Pernes.
D. Gonçalo Coutinho, o fidalgo (e também poeta) que trasladou os ossos de Camões para o interior da igreja de Sant' Ana, e foi o mecenas da 1ª edição das «Rimas», era de Vaqueiros, aldeia que dista daqui pelo rio cerca de três quilómetros.
Frei Luís de Sousa, o grande prosador, que publicou um epigrama latino nessa 1ª edição das «Rimas», de homenagem a Camões e D. Gonçalo, a quem chama de amigos, era de Santarém.
Dª Ana de Sá Macedo, mãe de Camões, era igualmente de Santarém, cidade que também disputa a naturalidade do Poeta.
Que outra terra do país está mais que Pernes no centro dos lugares habitados pelos comprovados amigos, e familiares, de Camões? Julgo por isso oportuna, e de grande mérito, a recuperação do dito «Moinho Manuelino», feita pela Fundação Comendador José Gonçalves Pereira, sob o impulso da Exma. Provedora Dª Maria dos Anjos. Também não deixa, pelo acima exposto, ser de bom gosto histórico colocar lá aquele azulejo com alguns versos de Luís Vaz de Camões, o maior poeta de Portugal.
Outrossim não custa imaginar, com o romantismo adequado, a cena do Poeta apaixonado, em êxtase ante a bela moleira, ruborizada da faina e do amor, por tardes e noites de paixão ardente nas margens destes rios que vão...
Só que... pode ser que não houvesse moleira. Pode a tradição referir-se a outro romance esquecido com dama de mais elevado coturno.
Importa por isso esclarecer alguns detalhes sobre este «Moinho Manuelino», da Ribeira de Pernes:
O conjunto arquitectural aonde se inclui a Casa da Moenda, ocupa uma área de 380 m2, divididos por dois pisos e salas anexas. No piso inferior, além da Moenda que aproveita a água da Levada, o conjunto apresenta mais quatro salas, todas bastante alteradas da arquitectura primitiva. No piso superior existem também quatro salas, uma com lareira, outra com um conjunto de nichos na parede, semelhantes aos dos antigos cartórios, e três janelas manuelinas geminadas. Nas salas anexas, para oeste da Casa da Moenda, vêem-se nas paredes restos de nichos maiores, semelhantes aos que servem para colocar santos nas igrejas.
Todo este conjunto arquitectural, bastante modificado por obras posteriores, arranjos e adaptações pelos tempos fora, constitui o que resta da igreja de Santa Cruz da Ribeira de Pernes, referenciada pelo padre Luís Cardoso, pelo padre Carvalho da Costa, e outros autores contemporâneos desta igreja. Os nichos na parede na sala do 1º piso, serviam para arrumar os livros do Cartório e Memória Paroquial do templo.
Os padres em exercício nesta igreja de Santa Cruz (apesar da Ribeira se incluir no termo de Santarém), eram da apresentação do vigário de Casével, e este da igreja de Santa Maria dos Olivais em Tomar, bailio da Ordem de Cristo, com sede no Convento de Cristo, também em Tomar, à qual pertenciam as três igrejas.
As restantes salas do piso superior funcionavam como casa de habitação do Padre ou Cura, aqui destacado, cujo deveria ter ao seu serviço alguns criados que zelavam pela laboração do Moinho. Este devia não só servir o abastecimento da casa mas para obter rendimentos suplementares para a igreja e Ordem.
A arquitectura geral deste conjunto aonde se inclui o Moinho, aponta para o estilo manuelino, portanto século XVI. Não se sabe todavia se o tombo de Casével de 1492 inclui este Moinho ou não.
À igreja de Santa Cruz competia os registos da Ribeira de Pernes, e tinha anexas a Ermida de S. Domingos (situada no largo da actual Música-Nova), a Ermida de S. João e a Ermida do Livramento, no cabeço fronteiro.
A ruína do edifício e fim do culto religioso deveria processar-se lentamente num período que deverá ir de 1755 (Pereira de Sousa diz que «a Ribeira de Pernes não padeceu com o Terramoto coisa de consideração, tem 68 vizinhos e 230 pessoas»), até meados do século seguinte. A fase terminal da actividade religiosa ter-se-ia ficado a dever à vitória definitiva dos liberais em 1834 (a Batalha de Pernes travou-se pela posse destes moinhos), e em especial por causa da extinção das Ordens religiosas e conventos, decretada por António Augusto de Aguiar neste mesmo ano. Este decreto acabando com as Ordens religiosas deixou ao abandono o Convento de Cristo em Tomar, sede da Ordem de Cristo, e estilhaçou organicamente as igrejas anexas. A igreja de Casével e de Santa Cruz da Ribeira de Pernes sofreram por tabela. Se aquela sobreviveu, a da Ribeira de Pernes não o conseguiu encerrando ao culto, transformando-se em ruína, acabando por ser vendida a particulares como o próprio Convento de Cristo o foi ao ministro Costa Cabral.
Os habitantes da Ribeira de Pernes no entanto deveriam exultar com esta medida, pois a partir daí uniram-se eclesiasticamente à Vila de Pernes, em torno da Matriz de Nossa Senhora da Purificação ou das Candeias. Terminava assim o velho estigma que os afrontava, dos habitantes da parte alta da Vila os injuriarem nas desavenças com a expressão separatista «Da ponte p'ra lá!», ainda usada por tradição no séc. XX.
Lentamente a memória da igreja da Ribeira de Pernes foi-se esbatendo. Um século volvido, já ninguém se lembrava dela. As Ermidas que tinha anexas tiveram igual sorte. A de S. João deu lugar a uma quinta do mesmo nome. A do Livramento foi vendida em hasta pública. A de S. Domingos foi demolida para dar lugar a uma sociedade cultural (durante as obras de adaptação surgiram ossos do subsolo revolvido, eram os do Padre Domingos da Costa, edificador da mesma, aqui sepultado para todo o sempre, ou até se fazerem arranjos...).
O Moinho Manuelino, esse sim, continuou a laborar. Agora na posse de particulares que o foram vendendo, ou arrendando, à medida que a velhice, ou a morte, os ia levando primeiro que ao Moinho.
No século XX, possuíram-no por renda ou compra, Vicente Flôr, filho do famoso moleiro de Herculano, em Vale de Lobos, José Flôr; América Flôr, filha de Vicente Flôr; Maria Manuela Flôr, irmã de América Flôr; Manuel Baptista Lopes; e finalmente a Fundação Comendador José Gonçalves Pereira.
Voltemos a Camões e à lenda dos seus amores com a bela e misteriosa dama que frequentaria este Moinho. Seria alguma linda serviçal? Ou dama de mais elevado estatuto, entrevista num dia de missa, como aquela outra por quem a tradição diz que Camões se apaixonou na igreja das Chagas em Lisboa? E porquê nas Chagas e não aqui na Ribeira de Pernes, tão perto da terra de sua mãe, nascida em Santarém? E por que não aqui tão perto de Vaqueiros, terra de D. Gonçalo Coutinho, recipiendário das «Rimas», e ordenador da trasladação dos ossos de Camões? E por que não aqui tão perto da igreja Matriz de Nossa Senhora da Purificação, cuja comenda pertencia desde 1538 a D. Manuel de Portugal, a quem o Poeta dedicou a Ode VII?
Indiquem lá os sabidíssimos camonianos (com provas e não fantasias), outro lugar assim tão perto destes nomes ligados sem dúvida a Luís Vaz de Camões? Esteve não esteve? Não sei, eu por acaso não estava cá nesse dia. Ouvi dizer e conto-o como ouvi. Ou melhor, com um pouco mais do que ouvi. O resultado da apaixonada investigação de duas décadas, que adicionei à lenda. Não será muito, mas o que ouvi era ainda menos. Maior que isso tudo é com certeza Camões e a poesia que nos legou, essa sim permanecerá mesmo quando ninguém se lembrar de quem o ignorou, ou de quem teve a culpa disso.
E se este «Moinho Manuelino» continuar a ser no futuro um lugar de lembrança do Poeta, o mundo ficará melhor, pois haverá a mais no mundo um lugar de poesia, amor, e memória do pão, e do labor que sempre lhes anda associado.
Por falar em labor, valerá a pena abordar um pouco a componente mecânica dos moinhos de água de Pernes, conjunto molineiro antiquíssimo (fala-se de moinhos deste tipo nas civilizações Persa, Romana, e Árabe), hoje quase em ruínas, incluindo as levadas ou calhas, as Casas de Moenda, e os engenhos.
As causas remotas desta ruína são as que a história aponta com o advento da primeira revolução industrial. As próximas, passam em Pernes, por uma deficiente valorização patrimonial deste conjunto. Da adaptação dos moinhos a outros fins (serralharias, fábricas de torneados, pocilgas, etc.). E a maior de todas, que tem sido a poluição do rio Alviela, tornando impossível a vida sã nas suas margens.
Mas examinemos de mais perto os moinhos de água de Pernes:
Há os de dois tipos:
- Moinhos de água de roda horizontal, ou de Rodízio.
- Moinhos de água de roda vertical, ou Azenhas (uma das últimas situa-se no rio Centeio, afluente do Alviela).
Nos dois casos o princípio é o mesmo: o Rodízio, ou a roda horizontal, fazem mover um eixo ligado à mó superior (chamada Andadeira, por ser a que anda sobre a de baixo, ou Pouso). Os Rodízios (roda horizontal), são de madeira e constituídos por uma roda com aproximadamente um metro de diâmetro, com ripas ou palas, chamadas Penas, dispostas em círculo. Estes Rodízios, e as rodas verticais (nas Azenhas), são movidos pela energia da água, geralmente represada nos Açudes, a um nível superior (cf. Azenha do Porto do Centeio). Do Açude ou do rio, a água é conduzida para o moinho por canais estreitos (Calhas, Levadas, ou Golas). Perto do Rodízio, ou da roda da Azenha, o desnível da Calha ou Gola acentua-se para maior impacto da água. A força desta acciona o Rodízio, ou a roda, que põe a Mó Andadeira em movimento. No caso da Azenha existe uma desmultiplicação que transforma o movimento horizontal do eixo, em movimento vertical. Há outras pequenas peças, o lobete, o aguilhão, a rela, etc., de que não daremos conta para não complicar esta ligeira explicação.
Com os Rodízios em movimento na parte baixa do moinho (Cabouco ou Inferno), passemos ao piso superior, ou Casa da Moenda, ou dos mecanismos de moagem. Aqui temos a Mó Andadeira já a rodar sobre o Pouso. Agora é só deitar o trigo ou milho na Tremonha, ou Moega, pois os Chamadores do Grão, agitados pelo movimento da Mó, não tardarão a comunicar-lhe o tremelicar, fazendo cair o cereal.
Acabada a tarefa, moído o cereal, o moleiro (ou o Leitor interessado), só têm que, para imobilizar o moinho, desviar a água dos Rodízios, ou da roda da Azenha. Para isso utiliza o Pejadouro, ou então baixa a Comporta da Calha, ou Levada, e pronto.
Com o moinho parado, o trabalho acabado, o moleiro satisfeito pode então provar um petisco rústico, com um copo ou dois para a sossega, acompanhado de pão verdadeiro, milagre da natureza, da fome saciada, e do engenho humano.”
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